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Informe N.3_2021

Rita Santos, Marlise Rosa

05 abr 2021

Em março de 2021, o Brasil superou a marca de mais de 300 mil mortos por Covid-19. Um dado assustador que acumula só em um único mês mais de 66 mil mortos por uma enfermidade cujos protocolos de prevenção e combate já estão estabelecidos e disponíveis. A ausência de um enfrentamento nacional à Covid-19, com fluxo de vacinação em massa, distanciamento social, uso de máscaras e renda mínima para atravessar esse momento de grave aprofundamento da pandemia, se mostra em sua face mais dura e deixa um legado de dor e luto incalculável.


Segundo o monitoramento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), os casos confirmados de Covid-19 acumulados entre indígenas até o dia 01 de abril de 2021 ultrapassam a marca de 51 mil pessoas infectadas, 1029 mortos e 163 povos afetados. Ou seja, além do povo Warao, proveniente da Venezuela, mais de 50% dos povos indígenas do Brasil foram atingidos pela Covid-19 hoje.


Pesquisas mais recentes desenvolvidas pela UFPel (Hallal et al., 2020) identificaram que em contexto urbano a frequência com que a infecção é detectada (soroprevalência) é quatro vezes maior entre os indígenas do que entre pessoas brancas. Não bastasse o alto índice de soroprevalência, o vírus se mostra ainda mais letal entre os povos indígenas. Ranzani et al. (2021) investigando mortalidade hospitalar por Covid-19 entre fevereiro e agosto de 2020 identificou que a letalidade em indígenas (42%) é maior em relação à totalidade das demais categorias de raça/cor, as quais, juntas, chegam a 38%.


Com acúmulo de diferentes comorbidades e alta situação de vulnerabilidade, as populações indígenas somam ainda outros ataques ao seu direito constitucional à saúde pública diferenciada.  O Plano de Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, em suas primeiras versões, incluía apenas as populações indígenas atendidas pela Sesai, cerca de 410 mil indígenas. Ou seja, menos da metade da população indígena brasileira segundo o Censo de 2010.


Graças a atuação do movimento indígena organizado, por meio da ADPF (Arguição de descumprimento de preceito fundamental) n.709, foi realizada a inclusão dos indígenas nos grupos prioritários e a ampliação dos serviços do Sasi/SUS durante a pandemia aos indígenas situados em áreas em processo de regularização fundiária.  Contudo, o consenso sobre o atendimento aos indígenas em contexto urbanos parece não ter chegado ao fim. O não atendimento aos indígenas nessa situação acarretará uma exclusão de mais de 42% de sua população, segundo o Censo de 2010.


A insistência dos órgãos competentes em estabelecer protocolos de atendimento diferentes às populações aldeadas e não aldeadas constitui uma “Indignidade!”, como afirma Gersem Baniwa. Trata-se de uma política que estabelece desigualdades entre iguais e requenta velhos estereótipos tutelares de distinções entre os povos indígenas. Afinal, não é o território que define quem é indígena ou não. É o seu pertencimento étnico, que segue com eles na cidade ou na aldeia.


Uma nota emitida pela  Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) e pela  Associação Brasileira de Antropologia (ABA) alerta para o risco provocado pela distinção. Ao estabelecer a “aldeia” como ponto de atendimento de vacinação, os indígenas que residem temporariamente nas cidades estariam estimulados a retornarem para receber a vacina. Tal caminho pode elevar a circulação de pessoas entre as cidades e as aldeias e, consequentemente, a possibilidade de circulação do vírus e do aumento de contágios. Justo o efeito contrário pretendido.


O pouco cuidado com que foi pensada a política de atendimento às populações indígenas se reflete na cobertura vacinal alcançada. No caso do estado da Paraíba, até o dia 29 de março de 2021, a cobertura entre esse segmento alcançava 76% do público estimado, porém, considera apenas a população situada em terras indígenas. Ou seja, um total, segundo a nota técnica n.10 (Secretaria de Estado da Saúde, PB), de 10.092 pessoas. Segundo o Censo de 2010, a população indígena da Paraíba é de mais de 25 mil pessoas. Uma exclusão no grupo prioritário de cerca de 60%. Cabe lembrar que a população indígena na Paraíba é composta pelos povos Potiguara, Tabajara e, desde fins de 2019, pelo povo Warao, indígenas venezuelanos. Dentre eles, os únicos que possuem terras indígenas homologadas no estado é o povo Potiguara.


A situação de atraso na vacinação dos indígenas se repete de diferentes modos em outras regiões. Para o caso da Amazônia, a Open Knowledge Brasil (OKB) aponta um ritmo de vacinação entre a população indígena 13 vezes menor que a dos outros integrantes do grupo prioritário, além do apagão de dados. O cadastro nacional tende a não qualificar as etnias e a não especificar raça/cor em pelo menos 21% dos registros nacionais.  Isso reflete dPiretamente na taxa absoluta de cobertura da vacina para as populações indígenas. Ainda segundo os dados da OKB, dos 413 mil indígenas esperados na 4a versão do plano, apenas 29% receberam a segunda dose até o momento. Ou seja, o plano nacional de vacinação que priorizou apenas as populações situadas nos territórios indígenas sequer conseguiu completar a meta estabelecida.


Além da desarticulação do governo na implementação da vacina, os indígenas enfrentam outros desafios. As notícias falsas, conhecidas como “Fake News”, têm atingido diretamente os povos indígenas e gerado uma onda de insegurança na adesão à campanha de vacinação. A campanha anti vacina disseminada entre eles têm origens diversas e é promovida de modo difuso. A fim de combater mais esse retrocesso, a Apib, que tem desempenhado um papel exemplar na luta dos indígenas contra a Covid-19 lançou a campanha “Vacina Parente!”. Composta por materiais acessíveis pelo site https://emergenciaindigena.apiboficial.org/vacinaparente/ e pelas redes sociais da articulação, a campanha é formada por mensagens diretas e esclarecedoras, muitas nas línguas indígenas. Uma tentativa eficaz de fortalecer a adesão ao imunizante.


Além das ações articuladas pela Apib, alguns povos indígenas têm organizado atividades pontuais de grande eficácia em seus territórios. Uma estratégia bastante disseminada em todo o Brasil desde o período inicial da pandemia foi o estabelecimento de barreiras sanitárias nos pontos de acesso. As barreiras buscaram evitar a entrada de pessoas de fora e a circulação do vírus. Outra medida, pontual e inovadora, foi estabelecida pelo povo Kuikuro, no Alto Xingu. A partir da experiência anterior de combate ao sarampo, com o apoio das universidades e entidades internacionais, adquiriram alimentos, medicamentos e oxigênio; constituíram uma casa de isolamento para os infectados; e, contrataram uma equipe médica para cuidados exclusivos. O resultado foi que de uma população estimada em 522 pessoas houve apenas 01 falecimento segundo o monitoramento da Apib.


O contexto atual é desafiador e exige medidas articuladas em diferentes níveis. Se por um lado, os ataques do governo federal aos povos indígenas se mostram de modo contundente; por outro, as populações indígenas estão cada vez mais organizadas. No pós-pandemia, nenhum dos lados sairá igual. A capacidade de reivindicação, vigilância, articulação, produção de dados e de propostas contundentes por parte da Apib é um caminho que deve nos inspirar na construção de uma saída para a crise sanitária e política que vivemos hoje.

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