Informe N.6_2021

Ana Paula Marcelino, Luana Genoud e Patrícia Pinheiro
21 maio 2021
Que se alimentar é uma necessidade vital, todo mundo sabe. Mas comer vai para além de uma necessidade do nosso corpo, é também atravessado por práticas culturais que falam sobre a configuração de determinada sociedade. O cultivo, o processamento, as técnicas, os saberes tradicionais, as partilhas de comida, as escolhas e até o que é proibido são respostas culturais ao ato de comer. Segundo o antropólogo Lévi-Strauss, quando analisamos as escolhas alimentares de uma sociedade, conseguimos analisar também a sua estrutura.
Como todo aspecto cultural, a alimentação passou por mudanças ao longo do tempo. O processo de globalização a partir do século XX aprofundou muito essa dinâmica e as formas de se alimentar em várias partes do mundo acabaram sendo afetadas. Até pouco tempo, tínhamos uma relação mais próxima que ia desde a escolha dos alimentos, das receitas e dos modos de consumir, passados de geração em geração, mas o aumento mundial da produção agrícola, a redução das barreiras promovida pela globalização e a larga distribuição de produtos processados promoveu um distanciamento entre nós e o processo de transformação dos alimentos. Geralmente eram as mulheres tradicionalmente encarregadas desse setor, mas com a Revolução Verde, a industrialização, o ultra processamento dos alimentos e o forte apelo da publicidade, a indústria e o nutricionismo agora ditam as regras do que se pode ou não consumir.
O paradoxo é que uma das consequências desse desenvolvimento foi que a fome, grande problema que assombra a humanidade, teve uma redução significativa com o aumento da produção agropecuária, mas, por outro lado, se multiplicou a carência nutricional (ou fome oculta), pois tivemos uma redução da variedade de alimentos consumidos e da disponibilidade de alimentos frescos e mais saudáveis.
Como resultado, há uma homogeneização e perda da qualidade nas formas de comer no mundo. Ou seja, mesmo que se coma bastante, são alimentos pouco nutritivos os que mais circulam no mundo globalizado.
Os efeitos para a saúde afloram em diversas doenças, com grande angústia em volta disso, resultando nas diversas dietas modernas e nas confusões sobre afinal o que é ou não saudável, o que desperta a questão da falta de autonomia dos indivíduos sobre o que lhe é certo comer ou não. Era basicamente nesse cenário que dialogávamos antes da pandemia, sobre qual alimentação nós queríamos enquanto humanidade, se uma que nutrisse o consumo exacerbado ou se uma que nutrisse nosso corpo e pensasse no meio ambiente. Afinal, o Brasil havia saído do Mapa da Fome em 2014. Com a pandemia, o cenário se modifica.
A volta do BR ao mapa da fome
Segundo relatório da FAO et al. (2020), a fome afetou 47,7 milhões de pessoas na América Latina e no Caribe em 2019, ainda sem contabilizar os efeitos da pandemia da Covid 19. Diante desse quadro, a reflexão sobre a segurança alimentar e nutricional e o entendimento de que a segurança alimentar é um direito fundamental do ser humano - incluído na Constituição Brasileira -, é redobrado de relevância. Apesar do destaque brasileiro na produção agropecuária mundial, voltamos ao mapa da fome.
Para analisar mais a fundo como isso poderia ser possível em um país tão rico em recursos naturais, é preciso lembrar que ainda em 2019 aconteceu a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), um dos primeiros atos do governo Bolsonaro. O Consea foi fruto de lutas da sociedade civil que remontam aos anos 1980, na defesa da qualidade dos alimentos, direito à informação, autonomia na produção e consumo, respeito às tradições culturais e manejo sustentável dos recursos naturais. Daí em diante, as medidas de austeridade e a extinção de políticas públicas estratégicas, principalmente no âmbito da saúde, só pioraram o cenário, principalmente depois da chegada da pandemia de Covid-19.
De acordo com os dados da rede Pensan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar), quase 20 milhões de brasileiros estavam em “insegurança alimentar grave” em dezembro de 2020, quando ainda tínhamos o efeito do auxílio emergencial mais destacado..Segundo o relatório de 2021, “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, no Brasil pelo menos 15% da população convive diariamente com a falta do que comer.
Mas com um agro pop, como o brasileiro, que na safra de grãos de 2020/2021 teve aumento de 4,6% da produção, como podemos voltar ao mapa da fome? Isso equivale a 269,9 milhões de toneladas de alimentos. Boa parte, porém, trata-se de soja, que teve um aumento de 6% das exportações. Ou seja, a produção, basicamente de alguns poucos commodities, dentre os quais a soja é o principal, é direcionada para exportação e não para a alimentação. Conforme reportagem da revista Le Monde Diplomatique, por outro lado, traz os dados do IBGE de dezembro de 2020 sobre a inflação dos alimentos, com destaque para o arroz (76%) e o óleo de soja (103%).
Na Paraíba…
Segundo dados da PNAD, ainda que entre 2004 e 2013 o Brasil tenha apresentado uma tendência à diminuição da insegurança alimentar, as regiões Norte e Nordeste mantiveram-se abaixo da média nacional. Com a chegada da pandemia e a intensificação dessa condição de insegurança, essas regiões foram ainda mais atingidas. Mas a falta de gestão da pandemia também passa pelo ocultamento dos dados acerca do que de fato está acontecendo. A Pesquisa de Orçamentos Familiares - IBGE (2017 - 2018) revelou que em mais da metade dos lares paraibanos havia algum tipo de insegurança alimentar. Com a pandemia, a situação certamente piorou.
O impacto da insegurança alimentar na saúde em tempos de pandemia
A relação entre desigualdades sociais históricas e os altos índices de adoecimento da população brasileira por doenças crônicas, como o diabetes e a hipertensão, tinha no SUS um lugar bastante estratégico. Focado na atenção básica, o acompanhamento de populações mais vulneráveis e mais propensas a desenvolver esses tipos de doenças - que têm a alimentação como eixo central para a manutenção do controle das taxas - era um dos carros-chefe mais significativos do SUS. A manutenção de uma renda básica para o acesso à uma alimentação balanceada, também era uma política de saúde pública de grande impacto. Nesse cenário, também podemos destacar o Guia Alimentar da População Brasileira, documento de 2006, reeditado em 2014 com dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF/IBGE), de 2008 e 2009.
Essa situação favorável, que foi sendo construída e mantida durante mais de dez anos por políticas públicas que partilhavam um mesmo objetivo - tirar a população mais vulnerável do mapa da fome - sofreu grandes impactos, diante dos projetos de poder que culminaram no golpe de 2016. Para piorar ainda mais o cenário, a insegurança sanitária provocada pela pandemia de Covid-19 levou o Brasil a figurar novamente no mapa da fome no mundo. Mas quais as consequências diretas da insegurança alimentar para a saúde das brasileiras e brasileiros?
De acordo com um levantamento feito por pesquisadores da UFMG, UnB e Universidade Livre de Berlim, 59,4% dos domicílios brasileiros se encontram em situação de insegurança alimentar. Essa situação se desdobra de vários modos e vai desde o parcelamento das compras mensais de alimentos até a substituição por alimentos mais baratos e pobres do ponto de vista nutricional. Ora, se a manutenção de uma boa imunidade - além da vacina, obviamente - é a principal forma que o organismo tem para enfrentar a Covid-19, como manter a imunidade alta se muitas brasileiras e brasileiros não sabem nem o que vão comer nas próximas horas?
Além de um problema diretamente relacionado à (falta) de gestão econômica da pandemia, a insegurança alimentar e nutricional também pode agravar algumas comorbidades, visto que uma alimentação pobre em termos nutricionais mas rica em sódio (sal), açúcar e gordura, por exemplo, pode resultar nas chamadas doenças crônicas não-transmissíveis. Esse cenário só reforça o que discutimos em outro informe: a gestão econômica da pandemia de Covid-19 no Brasil é uma medida de saúde pública.